Voltando à saída de Moro, eu disse ontem que ia pensar mais nas acusações que ele fez e voltar a esse assunto. Li, pensei e continuo com a mesma conclusão: se ele não soltar mais nada (o que talvez faça hoje ou amanhã), o que tem até agora é muito fraco. (segue o thread)


Pelas minhas conversas, a principal suspeita que está no imaginário popular é que tudo é um plano para salvar Flávio Bolsonaro das investigações sobre Queiroz e a rachadinha. Esse tese, no entanto, não tem absolutamente nada a ver com a saída de Moro.


Independentemente da culpa ou honestidade de Flávio, sua investigação está no RJ e não na polícia federal. Além disso, o timing não bate: Moro saiu quando Bolsonaro demitiu um delegado que NÃO estava investigando Flávio. Logo, se Moro tiver realmente provas...


... de que Bolsonaro fez algo ilegal em relação a isso, seria péssimo para o próprio Moro, pois significaria que ele teria visto algo ilegal, ficado calado e deixado para se demitir depois que um aliado seu foi demitido. Obviamente, isso não combina com o personagem. Logo, não..


... me parece que essa explicação faz nenhum sentido e podemos descartá-la. A acusação mais séria da coletiva é que Bolsonaro queria um delegado com quem ele quisesse conversar e que lhe enviasse relatórios. Essa parte é mais complicada.


Por um lado, é verdade que o teor dessas conversas PODERIA (ênfase no "poderia") ser ilegal. Porém, a conversa em si mesma não é ilegal. Pelo que me passaram, apresentar relatórios para o executivo é uma função normal do cargo. Além disso, em todo país, o chefe de estado...


... conversa com o chefe da polícia Resumindo: Bolsonaro tem a autoridade e o direito de escolher um delegado de sua confiança para o cargo. Se ele estava insatisfeito com a direção atual, ele poderia trocá-lo. Até aí, não há nada ilegal no caso.


É nesse ponto que eu acho complicadíssimo uma característica do próprio Moro. Ele sempre tenta pairar acima da política, enfatizando que suas decisões sempre possuem um mérito técnico. Ora, mas a indicação de qualquer cargo é SEMPRE política. Afinal, não existe uma técnica...


... que estabelece que apenas fulano de tal pode ser o delegado. É claro que é preciso olhar para o currículo, para a competência, etc., mas tem um elemento de confiança. No fim das contas, Moro tinha indicado um monte de gente para vários cargos da confiança dele e...


... não aceitou quando o presidente quis diminuir o seu círculo de influência interno. Ou seja, até aí, não houve nada de ilegalidade. Foi apenas uma disputa de poder interna entre os dois. Moro não aceitou deixar de ser "super-ministro" e ver sua carta branca ser reduzida...


... o que é compreensível por um lado, mas por outro faz parte do jogo. Bolsonaro é o presidente. Ele nomeou Moro depois de eleito e tem o dever de tolher seu poder interno caso os resultados não estejam satisfatório. E, novamente, até aí é só disputa interna de poder. Pura...


... política. Não tem nada de falta de critérios técnicos, nem ilegalidade. Bom, mas aí tem o print que Moro vazou. E eu entendo que a imagem da coisa é péssima. Mas ele está longe de ser conclusivo, pelos seguintes motivos.


Em primeiro lugar, como o próprio Moro diz, a investigação que Bolsonaro cita é comandada pelo STF, não pelo delegado da polícia federal. Logo, a mudança do delegado não vai impedir essa investigação. Porém, o grande problema é o seguinte: a própria investigação é questionável.


A investigação citada não tem nada a ver com Flávio Bolsonaro, desvio de dinheiro, etc. O alvo da investigação é o uso de fake news na internet. E a investigação tem dois grandes problemas: tanto na fonte quando no alvo.


Começando pela fonte: é muito estranho que o STF esteja ganhando cada vez mais poder na política brasileira. Quem acompanha isso (de esquerda ou direita), já observa com preocupação essa inflação do STF há muito tempo. Ele tem cada vez mais agido como uma espécie de novo...


... poder moderador, interferindo em quase todas as questões do dia. O objetivo da investigação torna a coisa ainda questionável. Embora de fato existam práticas imorais e ilegais na internet (uso de robôs, disseminação de fake news), é muito perigoso estabelecer...


... fronteiras para a liberdade de expressão. Tem realmente gente que espalha notícias falsas propositalmente, mas muitas vezes os próprios veículos oficiais e os políticos fazem o mesmo. A liberdade de expressão permite erros, mas é uma arma importantíssima para a democracia.


Um inquérito sobre fake news, comandado por um órgão de juízes não-eleitos, é muito preocupante, na minha opinião. Eu vejo facilmente como isso pode ser instrumentalizado para cercear críticas legítimas e garantir que apenas o que for conveniente aos poderosos possa circular.


Além disso, a expectativa é que o inquérito das fake news se conecte com o inquérito sobre as manifestações em favor de Bolsonaro. O objetivo dessa conexão me parece óbvio: provar que as manifestações nas ruas ou nas redes pró-Bolsonaro são ilegítimas e tirá-lo da presidência.


Ou seja, nós NÃO estamos diante de uma investigação de corrupção, como ocorreu na era petista, mas em algo totalmente diferente: parte do sistema político brasileiro está ampliando o seu círculo normal de autoridade para preparar a derrubada do governo.


Eu entendo que, para a oposição, a ideia do governo cair parece ótima. Porém, peço que percebam o que está acontecendo: o governo está caindo porque adversários DENTRO da máquina estatal estão tentando criminalizar manifestações nas ruas e na internet. O que há democrático nisso?


Isso, para mim, muda todo o contexto do embate entre Moro e Bolsonaro. Além de não haver indícios de que Bolsonaro estava impedindo investigação alguma com a substituição do delegado (já que ele não estava encarregado dessas investigações), a própria investigação NÃO é sobre...


... sobre corrupção ou "questões técnicas", mas parece cada vez mais ser um ATAQUE POLÍTICO que vem direto de dentro do aparato estatal contra o executivo. Isso nos leva a questões bem mais complexas (que eu já tratei em alguns textos e que o @silviogrimaldo fala bastante)...


... que é o sufocamento da dimensão propriamente política no Brasil. Em uma situação normal, o aparato técnico do governo garante que a máquina continue funcionando, enquanto o aparato político é o campo onde os valores e interesses são discutidos e negociados. Por exemplo....


... a aprovação/proibição do aborto precisa ser feita dentro do lado político, pois envolve os valores da população. No entanto, no Brasil, há sempre a pressão para que isso seja decidido "tecnicamente", sufocando a parte democrática do sistema. (Cheguei no limite. Continuo já)


(continuando) Um grande problema do sistema brasileiro é justamente essa confusão entre a parte política e as instituições. Isso é alimentado pelo resquício de positivismo, que faz com que as pessoas acreditem que é possível ter respostas técnicas sobre questões políticas.


Porém, há também confusão proposital: alguns agentes políticos percebem que não venceriam no jogo normal, então decidem disfarçar suas opiniões por baixo da técnica. Eu vejo sinais de que é isso que está acontecendo nos inquéritos do STF. Mais um sinal da politização do órgão.


Creio que o próprio Bolsonaro, inclusive, contribuiu para alimentar essa confusão, ao insistir que seu ministério seria eminentemente técnico. Foi exatamente por isso que ele convidou Moro: além do simbolismo da luta contra a corrupção, Moro se encaixava nesse perfil.


Porém, creio que Bolsonaro percebeu agora que é impossível sustentar isso. Todo ministério possui um componente político. Bolsonaro percebeu que estava cercado de inimigos e que a pressão estava aumentando. E, no momento do aperto, ele percebeu que Moro não estava com ele.


Moro nunca foi um homem da direita. Nas raras vezes que se pronunciou sobre qualquer assunto ideológico, ele tendia mais para o progressismo ou algum centrismo vago. Na prática, ele sempre voltava aos tais critérios técnicos. Porém, isso não era mais suficiente. Agora ele...


... estava em um cargo político, no meio de uma briga violenta, e ele não quis se aproximar do presidente e ajudá-lo a sobreviver. Creio que esse foi o verdadeiro motivo da saída. Havia uma distância entre Moro e Bolsonaro. Isso é mencionado nas mensagens de Carla e apareceu...


... com clareza durante a crise com os governadores. Me parece que o próprio Moro continuou tentando agir como um tecnocrata por excelência: ficar fora da briga política, mantendo boas relações com todas as instituições, preservando a própria reputação como seguidor de regras.


Isso, aliás, é excelente em um juiz, mas não é assim que a política funciona. Política é briga. O agente político é um das partes da disputa, não o árbitro neutro. Neutralidade em uma briga significa ajudar os oponentes.


Sei que já estou especulando, mas às vezes chega a me parecer que talvez Bolsonaro tenha trocado o delegado justamente para forçar a saída de Moro. Perder Moro não foi o custo de trocar o delegado, mas o contrário: perder o delegado foi o custo de trocar Moro.


Além disso, a postura de Moro nos últimos dias reforça que essa intuição estava correta. A atitude dele desde então foi simplesmente lamentável. Existe um monte de coisas questionáveis em sua narrativa. A maior foi insinuar que o governo de Dilma teria menos interferência..


... política. O negócio é tão absurdo que não dá para entender o que ele estava pensando. Parece ter sido uma frase calculada para ferir o governo: 'olha aí, até o inimigo do PT está dizendo que esse é pior'. Porém, ele fez parte DESSE governo e prendeu um monte de gente do...


... outro, o que fica parecendo um tiro no próprio pé. Para completar, ainda teve o tal pedido de pensão para a sua família e as declarações de que vai procurar emprego porque não enriqueceu na política. Embora faça algum sentido falar nisso, fica parecendo um pouco...


... de sentimentalismo, e até papo de pré-candidato, além de ser estranho que alguém tão formalista peça algo que não pode ser dado formalmente (não existe pensão para ex-ministro).


A impressão que fica para mim é a seguinte: Moro, como bom tecnocrata, se sentia desconfortável ao lado de Bolsonaro -- tinha evangélicos demais, olavetes demais, liberais demais ao redor dele. Ele viu uma oportunidade de subir de nível e ficou seduzido com a ideia...


... de ser ser um super-ministro, mas não queria entrar no jogo sujo da política. No entanto, ele acabou entrando -- e entrou contra quem lhe deu o cargo. Ao perceber que o governo estava por um fio, Moro deve ter percebido que seu ultimato era uma oportunidade para sair...


... do governo antes que ele caísse. Ele deve ter discutido isso nas ligações com Maia, membros do STF, etc. O pessoal deve ter dito: "caia fora agora, proteja a sua biografia, senão você vai ter que defender o governo durante um processo de impeachment".


Ele também deve ter calculado que as chances de ser aprovado pelo senado para o STF seriam bem maiores se a indicação viesse de Mourão, após um acordo com com Maia e Alcolumbre. Ou seja, longe de ter sido uma decisão por critérios legais ou técnicos, ele mudou de grupo político.


Por isso mesmo, ao contrário do que todo mundo está dizendo, acho que Moro sai muito encolhido dessa história. Como falei ontem, essa insistência tecnocrática revela ingenuidade (não saber como a política funciona) ou duplicidade (se fazer de técnico para ganhar vantagens...


... políticas). Estou achando cada vez mais que é provável que seja o segundo caso. O resumo da história é simples: Moro sentiu que o governo ia cair e decidiu ajudar a derrubá-lo para ficar melhor na fita. Como o povo diz, para Bolsonaro, a saída de Moro foi um livramento.


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