Revi "Axé: Canto de um Povo e De Um Lugar". Tinha assistido em 2015, na Mostra de SP. 5 anos depois é uma delícia vê-lo no Netflix. Como crescido em Sergipe, estado mercado-teste da Bahia e entendido conceitos de alegria a partir dessa música, deixo comentários em 🧵.


Antes de mais nada: é um deleite de pesquisa audiovisual. Cada foto de trio é um ensaio de arte. Cada cena de aglomeração em dança é um debate antropológico. Cada trilha tocada é um arrepio e um olho marejado. Não da pra acabar sem sacar a relevância do que foi. É lindo.


Ainda há a valorização do tamanho de Gerônimo, de Luiz Caldas, do Acordes Verdes, de Pretinho do Samba, de Wesley Rangel e do papel de Saulo como praticamente única fonte criativa atual de certo imaginário do Axé como algo atualizado, potente e não replicador retrô.


Mas é tanto informação, tanto conteúdo, que se abrem muitas portas e nem todas são fechadas. Se fosse um exercício de linha do tempo pura e simples, seria redondo, mas na agonia de se falar de um tudo, as polêmicas chegam e não são resolvidas. Fora os buracos.


Há um difícil entendimento cronológico. A escolha por blocar o doc pelas bandas. A opção por fluidez de frases (de um aspa eu puxo outro assunt) bagunça o um pouco o coreto. Há idas e vindas de difícil acompanhamento pra quem não é versado naquilo ali.


Depois vem as brechas: 1) Margareth Menezes merecia um capítulo só dela. Ela é protagonista, a preta que deveria ser gigante e não deixaram por escolha (racista) mercadológica.


2) A treta dos irmãos Marques do Chiclete com Banana é aberta e não há nem um cheiro de entendimento sobre motivos. Fica-se no "brigaram pela separação". Por que? Como? Quando? Qual o contexto? A partir de quando? Chances de resolver? Nada é esclarecido.


3) A escolha de Daniela Mercury (de quem aumentei a admiração ao falar do seu afinco pelo trabalho refinado e a ralação) teve questionamentos raciais gigantes que perduram até hoje. Fala-se muito da branca que canta "A Cor Dessa Cidade sou Eu". Nada no doc.


4) Os blocos surgidos dos colégios e cursinhos de pré-vestibular da elite de Salvador instituiram a corda como a separação de quem não paga. A exclusão racial e o imaginário de que "dentro = seguro", "fora = a pipoca preta e violenta" aconteceu. Zero abordagem sobre.


5) Cadê LAZZO MATUMBI no DOC?


6) Como NINHA GOGÓ DE OURO (pra mim, o maior puxador de Trio que eu já vi) só aparece no finzinho?


7) Li que o BaianaSystem não quis participar do doc por não querer se enquadrar no esteriótipo do gênero. Mas acho que cabia demais sua citação como espasmo de futuro junto com Saulo. Não haveria esse fenômeno contemporâneo sem Olodum, Ilê, Araketu, Harmonia, Psirico.


8) Carlinhos Brown é uma figura muito pouco explorada. Aparece como mais uma importante obra na galeria. Mas sua inquietude, fundamental na aceitação de uma certa intelectualidade elitista do eixo rj-sp e seu diálogo com outros gêneros não é mastigado.


9) O contraponto dos males da indústria tem 10 minutos. Não se aborda a ânsia por hits que enlatou o gênero. A preocupação no trio mais potente e na roupa mais bacana do cantor em detrimento ao fundamental: música que comove. As trilhas viraram pastiche e quase mataram o ritmo.


10) Por fim, o pagodão passa como trechinho. O ritmo que de subgênero, se tornou o protagonista descolado da indústria do Axé, capaz de flertar, espelhar e misturar com outros fenômenos periféricos. Merecia mais.


11) A macumba e toda influência das religiosidades afrodescendentes passa ao largo da maneira como se é falada o surgimento dos blocos afro. Valia ao menos o asterisco ali.


Reitero: o doc é uma delícia. Mas merecia e deveria ser uma série. Alguns tópicos não deveriam ter sido abertos, se não havia perspectiva de resolução no próprio roteiro. Mesmo assim, vale demais. Chorei algumas vezes assistindo e vou rever mais umas 30x.


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