Na minha última saga hospitalar muitas coisas aconteceram, tentarei relatar uma das mais bonitas... Eu ficava isolada em um quarto sem poder receber visitas, só tinha contato com a equipe médica, que entrava no quarto usando os EPIs que vocês veem agora na pandemia.


Não, eu não tinha nada contagioso, mas qualquer bactéria que entrasse em contato comigo poderia me matar. Era muito difícil passar os dias, noites e dores sozinha, mas durante um tempo, especialmente de madrugada, sempre vinha um acalento...


Acontece que uma voz doce e amorosa sempre cantava, afinadíssima, uma única música. Todos os dias ela cantava, no mesmo horário e a mesma canção! “Eu quero uma casa no campo...” 🎼


Eu aguardava ansiosa por aquele momento e passava os dias pensando em quem ela era e se ela também estava sozinha como eu...


Em uma madrugada difícil eu comecei a ter uma crise forte e enquanto a médica me estabilizava eu comecei a ouvir ao fundo aquela voz e a canção... Me concentrei naquilo e fui me acalmando.


Passado o sufoco, sem entender nada, a médica me disse que eu simplesmente fechei os olhos e comecei a cantar e a me acalmar. Perguntei se ela não tinha ouvido a música e ela disse que não ouviu nada, estava concentrada em mim.


Expliquei que era a moça que cantava a dias, de madrugada, aquela mesma música. E ela me disse: eu fico nesse andar a madrugada toda e eu te garanto que ninguém canta aqui! Sorrimos!


Nesse momento eu percebi que a moça que cantava não estava mais na vida terrena e aquilo passou a ser ainda mais especial pra mim...


Quando a médica entrou em contato com minha mãe pra falar que tinha estabilizado a crise, contou também do meu relato da cantoria. Minha mãe fez uma chamada de vídeo e junto de minha avó conversamos e eu tentava convencer elas que já estava tudo bem! Que a crise havia passado!


Enquanto elas genuinamente traumatizadas por minhas paradas cardíacas anteriores, insistiam nas recomendações! Ao final, minha avó perguntou da cantoria e eu contei o que acontecia. Elas acharam bonito e minha mãe perguntou: a música é boa pelo menos?!


_Sim! É Elis!!! E prontamente cantarolei: “Eu quero uma casa no campo... onde eu possa ficar no tamanho da paz” 🎼 As duas se entreolharam, minha mãe ficou bem séria e minha avó sorriu.


Quando nos despedimos, antes de desligarem, minha mãe falou meio engasgada: se ela cantar novamente, cante com ela! Fiz que sim com a cabeça e encerramos a chamada.


Passei bem no dia seguinte e consegui dormir no início da noite. Acordei de madrugada com a canção. Cantei também, bem baixinho e comecei a sentir a voz se aproximando no corredor.


Olhei para a porta e uma luz entrava na ante-sala do quarto. Era ela, a moça que cantava. Cantamos juntas e perguntei qual era a história dela. Da cabeça até sua cintura eu só cia uma luz, não via sua fisionomia.


Mas a medida que ela falava sobre sua vida eu ia vendo com mais clareza a forma que ela queria se mostrar. Era morena, jovem, com olhos de jabuticaba e uma paz que a tempos eu não sentia. Ela contou sobre sua infância e adolescência, mas não dava muitos detalhes.


Ela disse que sua passagem foi a muitos anos e que ficou muito tempo em evolução pra se recuperar de sua partida e que fazia pouco tempo que ela tinha recebido o presente de poder vir ajudar. Apesar da curiosidade eu preferi não perguntar sobre sua partida...


Perguntei quem ela vinha acalmar toda noite. Sorrindo ela me disse que era alguém que ela não pôde conhecer em vida, mas que foi o motivo pra ela viver até onde ela conseguiu.


Ela perguntou de onde eu conhecia a música e eu disse que minha mãe sempre colocou Elis pra eu ouvir desde recém nascida. Ela sorriu e me perguntou se meus pais eram bons comigo. Eu disse que sim, que meu pai já havia falecido e que minha mãe era uma pessoa maravilhosa!


Antes de ir embora ela disse pra eu descansar, falou que estava muito feliz de termos conversado e que eu deveria ter paciência para que o tratamento funcionasse. Completou dizendo que quando eu precisasse de ajuda era pra cantar aquela canção. Nos abraçamos e ela se foi.


Dormi um sono pesado e acordei com a médica no quarto. Ela tinha trazido meus exames do dia anterior e me perguntou com quem eu falei tanto de madrugada. Eu ri e disse que achava engraçado ela já estar acostumada comigo!


Ligamos para minha mãe pra falar dos resultados dos exames (que ainda estavam bem abaixo do necessário) e ao final a médica saiu e fiquei conversando com minha mãe. Contei o que tinha acontecido. Ela chorava de soluçar... eu pedi que se acalmasse e garanti que estava tudo bem.


Ainda engasgada no choro, minha mãe perguntou se eu conhecia a moça... Eu disse que não, mas que senti carinho por ela porque ela tinha uma história muito sofrida e que ela aparentava ser mais nova que eu, mas que eu não sabia o final da vida dela, só até a adolescência.


Pedi pra minha mãe parar de chorar e ela me disse que estava chorando de emoção e de tristeza. Eu não entendi.. Ela explicou que estava feliz que a moça havia vindo e que estava triste porque não estava lá comigo.


Completou dizendo que eu conhecia essa história e que o carinho não era empatia, era amor. Nesse momento eu me arrepiei inteira e um choro compulsivo surgiu. Os aparelhos que me monitoravam começaram a apitar e enquanto minha mãe pedia pra eu respirar a médica entrou.


Depois de muitos procedimentos e nada que me acalmasse, enquanto eu apagava, aquela luz surgiu ao meu lado, eu sentia sua presença e ouvia ela cantar. Não era de madrugada, mas ela veio.


Claro que veio! Eu era a pessoa que ela cuidava. Ela era a pessoa que me gerou. A música era a mesma que ela cantava chorando na recepção do hospital, anos atrás, quando meu pai foi até ela pra saber se estava tudo bem.


Aquela luz, que não conheceu quem ela protegia, era a mãe que sozinha tentava um atendimento e um casal a enxergou e providenciou os cuidados para ela.


Ela se foi naqla madrugada e em um gesto de confiança ela me deu a eles, mesmo sem ter me visto ainda, com um pedido pra q eles cuidassem de mim da mesma forma que cuidaram dela. Eu conheci minha mãe biológica assim! Com ela cantando no meio das minhas crises pra me acalmar.


Ela ficou comigo em muitos momentos que precisei. Me guiou durante toda a internação e quando me curei ela avisou que era hora dela partir, mas que estaríamos sempre conectadas. Nunca mais eu a vi, mas sempre sinto ela comigo e todos os dias eu canto nossa canção.


Dois anos atrás eu finalmente consegui a nossa casa no campo! Realizei o sonho que era dela e que passou a ser meu!


🎼 “Eu quero uma casa no campo, onde eu possa ficar no tamanho da paz e tenha somente a certeza dos limites do corpo e nada mais...” 🎼 🦋


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