Passam hoje exactamente cem anos do dia de aniversário da minha bisavó em que a campainha tocou inesperadamente ao início da tarde – era para o meu bisavô e quem se lhe apresentava era o Primeiro-Ministro demissionário, António Granjo. /1


Granjo havia pedido ao Presidente da República a sua demissão nessa manhã em que Lisboa acordara com tiros de artilharia da GNR, estacionada na Rotunda. Era uma revolução e o Governo não conseguira controlar os acontecimentos. /2


Granjo recolhera a sua casa, mas a situação era perigosa. Sem aparente liderança, grupos armados de civis, marinheiros e guardas republicanos procuravam castigar os que julgavam responsáveis pela situação. /3


Granjo fugiu, então, pelas traseiras e foi bater à porta de um seu vizinho - Francisco Cunha Leal. Um ex-deputado popular e ex-ministro das finanças, que tendo amigos entres os revolucionários, recusara tomar parte. /4


Mas Cunha Leal não era só um conhecido de Granjo - era seu adversário político, e semanas antes tinham-se reconciliado, isto depois do meu bisavô ter desafiado Granjo a um duelo. /5


Cunha Leal deu guarida a Granjo, até que alguém denunciou a situação aos revoltosos. Estes apressaram-se a cercar a casa de meu bisavô, que estava convencido que a integridade do seu domicílio seria respeitado. /6


Um civil e dois GNR subiram a escada de salvação e assustaram a minha bisavó à porta da cozinha. O meu bisavô, sem denunciar a presença de Granjo, recusou-se a receber soldados com menor patente que ele. /7


A situação complicava-se, sem perfeita noção do que se estava a passar e a mando de quem. Os contactos telefónicos e um emissário nada resolveram e a casa continuava cercada, um potencial assalto iminente. /8


Durante o deprimente jantar de aniversário, o guarda-marinha Benjamim Pereira – dias antes tinha feito um pedido a Granjo via meu bisavô – apresentou-se com o intuito de retirar Granjo para bordo do “Vasco da Gama”, no Tejo. /9


Meu bisavô concordou apresentar-lhe a proposta, mas só com a promessa de que iria com o seu hóspede, que nunca seriam separados, e nunca na condição de presos. Granjo aceitou e partiram, sem se aperceberem do logro em que tinham caído. /10


O relato destes acontecimentos é de Consiglieri Sá Pereira, no número 171 do Diário de Lisboa. Meu bisavô transcreveu o texto, de «perfeição e rigor inexcedíveis», nas suas memórias na íntegra e sem alterações de forma. /11


A noite foi longa: ambos foram levados na famigerada “camioneta fantasma” para o Arsenal da Marinha e não, como prometido, para bordo do “Vasco da Gama”. Lá a situação era de anarquia, com uma multidão civil e militar armada e sedenta. /12


Foram separados e o meu bisavô protestou pela quebra da promessa. A multidão exigia a sua prisão e ele gritava que tinha dado guarida a um homem honrado. A certa altura uma sentinela dispara e o segundo tiro atinge o meu bisavô na garganta. /13


Com peito cheio de sangue e incerteza da gravidade dos ferimentos, Cunha Leal continua a perguntar por Granjo – na “pousada da morte”, ao cuidado de Carvalho Crato, membro da Junta Revolucionária. Convencem-no a ser retirado de carro. /14


Já no automóvel, há quem não o queira deixar sair e o queira matar. Cunha Leal sai do carro, volta a entrar no Arsenal, e é levado até Granjo. Chegam Agatão Lança e outros, que já tinham alcançado a casa de Cunha Leal tarde demais. /15


Agatão Lança tenta resolver a complicada situação dirigindo-se aos amotinados, uns arrependendo-se, outros não. Espingardas voltam a ser apontadas ao meu bisavô, mas Lança consegue retirá-lo para o levar ao hospital. /16


Regressado do hospital, Lança acorre à sala onde estava Granjo, mais uma vez tarde demais. «Os senhores poderão ser bons republicanos, mas são assassinos! Eu, Cunha Leal e António Granjo poderemos ser maus republicanos mas somos homens honrados.» /17


Nessa noite – a #NoiteSangrenta – foram mortos António Granjo, José Carlos da Maia, Machado de Santos, Freitas da Silva, Carlos Gentil, Botelho de Vasconcelos. Outros escaparam por pouco, como Fausto de Figueiredo, Tamagnini Barbosa ou Alfredo da Silva. /18


Nunca foram obtidas explicações credíveis e definitivas, apesar do apurado julgamento do cabo Abel Olímpio, o “dente de ouro”, comandante da “camioneta fantasma” e das incansáveis diligências de Berta Maia, «senhora de velha estirpe portuguesa», viúva de Carlos da Maia. /19


No funeral de Granjo, meu bisavô, ainda com o pescoço enfaixado, discursou: «O sangue correu pela inconsciência da turba — a fera que todos nós, e eu, açulámos, que anda à solta, matando porque é preciso matar. Todos nós temos culpa!» /20


Cresci a ouvir que somos um país de brandos costumes, ao mesmo tempo que ouvia esta e outras histórias de acontecimentos, que de brando pouco tinham. Granjo ainda não completara quarenta anos, o meu avô tinha trinta e três. /21


De entre o que herdei, herdei o meu nome: Francisco.


Fontes: [1] Cunha Leal, F; “As Minhas Memórias” [2] Farinha, L.; “A Noite Sangrenta: crime e castigo.” [3] Farinha, L.; “Cunha Leal, deputado e ministro da República: um notável rebelde” [4] Arquivo Municipal de Lisboa 23/23


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